2022/08/22
Carta Coletiva de presas numa prisão feminina em Portugal
07-07-2022
Aos corações que se lembram que as prisões existem: vocês.
As reclusas que se não tentarem mudar o hoje, os amanhas serão sempre iguais a ontem.
As reclusas do E.P. vêm por este meio apelar a vossa atenção para a situação presente, que se vive neste estabelecimento prisional feminino.
Um atentado aos nossos mais elementares direitos, previstos na constituição portuguesa e nos direitos humanos internacionais. Cuidados de saúde. Consultas de clínica geral esperas de semanas pedidos incontáveis, com resposta zero.
Dentista, inúmeros casos de espera, acima dos três meses abcessos tratados com Ibuprofeno (quando há em stock) ou Paracetamol. Consultas de especialidade, com espera acima dos seis meses e em alguns casos, anos.
Reclusas devolvidas à liberdade sem nunca, terem sido diagnosticadas e tratadas.
A medicação prescrita, por vezes vem errada para os pavilhões (dezenas de vezes) e quando por nós é exigida a correção, ouvimos “tome se quiser”.
Nota: medicação de psiquiatra, o que agrava as consequências da toma indevida por outras reclusas, que por não terem formação médica, nem sabem os riscos inerentes a tamanha negligência,
As refeições são pobres de ingredientes a uma alimentação equilibrada, nomeadamente, durante semanas, meses, é sempre igual.
Legumes, praticamente não existem.
Arroz e massa alimentícia são fornecidas diariamente, também a batata. É um sonho, esporadicamente um vegetal, espreita no prato, pelo cantinho do nosso imaginário.
Carne e peixe, em quantidades equivalentes à refeição de uma criança em idade pré-escolar na maioria das vezes, refeições mal cozinhadas, cruas e isentas de tempero.
As refeições vegetarianas são surreais, grão, arroz, feijão e massa e repete-se o menu, na refeição seguinte, na semana seguinte e no mês seguinte.
Inúmeros casos de intolerâncias alimentares, tantos que o serviço de enfermagem, traz diariamente para os pavilhões, anti-histamínicos que são distribuídos voluntariamente, sem prescrição médica, a quem se queixa de erupções cutâneas ou distúrbios intestinais.
A sopa, primeiro alimento da tabela alimentar ou se reduz a uma solução aquosa, ou a uma massa com a consistência que normalmente se associa a um pudim.
Sem sabor e mais uma vez, ausência de legumes. Os reforços que nos são fornecidos às 19h horas, após o termino de jantar, são constituídos por pão, doce na maioria das vezes, esporadicamente um pão com queijo, ou manteiga e um dia por semana com fiambre, esse intragável, adulterado pelo calor, com cheiro nauseabundo e coloração esverdeada, pelo tempo entre a confeção e a entrega.
Os contactos com o exterior são caóticos. Duas cabinas de telefone por piso e duas no recreio para cerca 180 reclusas.
O ruído inerente à dimensão do espaço e quantidade de reclusas, é gigantesco o que como é óbvio é impossível isentar o ruído ou fazer-nos ouvir nos parcos 5 minutos diários, além do fator privacidade.
A correspondência é revista pelo corpo de guardas, envelopes e selos que nos enviam são apreendidos porque a cantina os vende. Surreal é a cantina vender envelopes brancos [correio verde], mas selos não. Um negócio implantado.
Na higienizarão das celas é-nos fornecido cinco litros de lixívia, diluídos em agua por cela com 4 mulheres cada. Quatro rolos de papel higiénico por mês. Existem reclusas que não têm qualquer apoio familiar a nível financeiro, e atividade laboral no E.P. é diminuta, e só uma percentagem muito baixa o consegue, o que torna a situação degradante para estas reclusas. Quatro pedaços minúsculos de sabão azul e branco, destinados a lavagem de roupa e para alguns até para a sua higiene pessoal.
A cantina do E.P. tem bens à venda, mas por rotina os produtos mais acessíveis, não chegam para todas as reclusas.
Bens esgotados durante meses (ex. aveia) não existe há meses, um alimento que utilizamos para suprimir a carência de outros.
As condições de habitabilidade são precárias, celas com esgotos entupidos, janelas partidas e outras inexistentes.
Cobertores na quantia de quatro em más condições, que durante os meses de inverno não aquecem do frio, pela falta de janelas com vidros.
E por fim o acesso aos serviços de educação, chefia e Diretoria do E.P.
É-nos fornecido um cartão P.T. onde por pressuposto deveriam ser inseridos os números de telefone de familiares: mas para tal é exigido um comprovativo enviado para um email do E.P., com o n° e o nome do utilizador.
Inúmeros emails são enviados, e por vezes esperamos meses até os números serem inseridos, privando-nos do contacto com a família.
Quando pedimos esclarecimento aos serviços de educação na maioria das vezes, nem resposta obtemos.
Existem reclusas que não sabem o nome da educadora/e que lhe foi atribuído, basicamente porque não a conhecem.
Só pudemos fazer um pedido por semana para os serviços pretendidos e assim se arrasta por meses a solução dos problemas de quem se encontra impotente para se fazer ouvir.
Regime de visitas e bens permitidos entrar no E.P.:
1 kg de bens alimentares por visita, mas o critério dos produtos não é igual para o corpo da guardas na portaria.
Existe uma tabela de bens permitidos, mas o critério é deixado ao grau de humor de quem fez a revista aos sacos. Produtos que entram numa visita, na próxima não podem entrar. Pura utopia a lista afixada.
Encomendas são permitidas se devidamente autorizadas, mas é recorrente, puro e simplesmente se evaporem dentro do E.P.
Transferências bancarias que levam meses a entrar na conta da reclusa, e outras que nunca entram. Erros básicos de valores inseridos na conta de outras reclusas, e jamais resolvidos. Cartas dirigidas ao Sr. comissario e Sra. Directora, sem resposta.
Correspondência para estâncias superiores violada e retida no E.P. etc. etc.
Todos os factos expostos são rigorosamente verdade sem exageros ou ficção.
Estamos privadas da liberdade à ordem dos tribunais competentes, a cumprir as penas que nos foram impostas, mas aqui a sensação é de um segundo julgamento e um duplo castigo, é unânime, questionar-mo-nos se a reinserção social de que tanto ouvimos falar em debates políticos e na comunicação social é uma mera fantochada, onde quem mexe as cordas do nosso futuro, manipula a seu belo prazer o nosso destino.
Sentimentos ambíguos contra um sistema que propõe o travão, a quem viveu à margem da lei, mas não cria condições para tal.
O estigma da prisão, está e vai connosco na revolta interior de não passarmos de meros números.
Atentamente
As reclusas do pavilhão x.
About Vozes de Dentro
Somos um grupo de pessoas presas, presos e pessoas que do outro lado dos muros acompanham e participam, de diferentes formas, nas lutas das pessoas reclusas e das suas famílias.
As pessoas privadas de liberdade e especialmente as pobres, racializadas, mulheres, transgéneros e crianças enfrentam condições desumanas, violência física e psicológica nas prisões.
As histórias destas pessoas são altamente invisibilizadas, e, por isso, expostas a constantes violações dos seus direitos fundamentais (1).
Em particular, Portugal é dos países europeus onde mais morrem reclusa/os (2) e as prisões portuguesas têm sido por diversas vezes alvo de críticas do Conselho da Europa, nomeadamente do Comité Contra a Tortura. Conjuntamente, encontra-se entre os países da Europa onde se condena mais a penas de prisão, por períodos mais longos e onde a sobrelotação é uma realidade. Os índices de encarceramento são altos especialmente entre as mulheres, também condenadas a penas maiores, e não existem dados oficiais sobre o número de pessoas transgénero, bem como sobre a pertença étnico-racial (1, 3).
Testemunhos de reclusas e reclusos e seus familiares indicam o frequente recurso a fármacos sedativos, anti psicóticos e anti convulsivos sem uma conexão clara com a necessidade clínica dos próprios fármacos, mas mais claramente em coerência com a atitude repressiva do sistema prisional (4).
A maioria dos estabelecimentos prisionais caracterizam-se por graves problemas nas infraestruturas, péssima alimentação, falta de acesso a bens e produtos essenciais.
Os cuidados de saúde são também precários e deficitários, com a maioria de profissionais de saúde subcontratada.
A atividade laboral remunerada é parca e traduz-se, maioritariamente, na exploração e as ofertas formativas são poucas.
Isto, aliado à baixa aplicação de medidas de flexibilização de penas, ao inexistente apoio para a reinserção social, ao isolamento social a que ficam sujeitas as pessoas presas com severas limitações de contato com as suas famílias e comunidades e os percursos prévios de institucionalização que muitas viveram previamente à prisão, configura os ciclos de pobreza-exclusão-institucionalização-violência (5).
Na prisão as discriminações, violências e a exploração persistem e são exacerbadas remetendo-as para invisibilidade, abandono social e marginalização.
O objetivo deste grupo é de visibilizar a realidade obscurecida das prisões e pensar coletivamente possíveis ações de apoio para quem está dentro.
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