Amor Entre Mulheres na Prisão em Portugal = Solitária

   

A desumanização da prisão passa pelo controlo e repressão das relações de amizade e intimidade e da expressão do afeto tão fundamentais para a sobrevivência e para sermos humanas. O toque, um abraço ou qualquer expressão de afeto são motivo de castigo incluindo o internamento em cela de isolamento.

A repressão, a perseguição e o castigo da sexualidade sob uma moral patriarcal e heteronormativa criam as condições para o abuso, e a violência sexual e a profunda desumanização a que as pessoas presas são sujeitas na prisão.

A carta que partilhamos foi nos enviada desde uma prisão em Portugal.

“Violência Sexual, Moral e Psicológica

Aqui na cadeia a meu ver como reclusa há alguns anos e bissexual que não escondo para ninguém! Existe sim violência sexual 1º porque somos privadas de manter qualquer contacto, se tiver parceiro ou parceira é tudo dificultado, se conhecemos alguém aqui dentro e criamos afinidades não nos dão condições para ter uma relação intima, que no meu ver é muito incorreto, por vezes gera muita promiscuidade por parte de algumas pessoas pelo fato de não obterem este tempo e espaço, já vi muitas vezes gente ir ao castigo pelo fato de ter sido pega no ato sexual, agora eu pergunto o sexo entre duas pessoas que se gostam e é consentido é crime? Claro que não! Crime é colocar estas pessoas de castigos psicológicos por fazerem algo que todos nós humanos praticamos diariamente, para mim isto é uma grande violência!

Outra coisa que é muito comum são os guardas homens assediarem-nos a nós reclusas e não são punidos isto é crime, por vezes posso garantir que ter relações sexuais com um guarda prisional é super fácil basta ser caladinha e entrar no jogo nojento, isto sim é abuso. Conheço duas reclusas que têm um “namoro” (risos). Rio-me porque não vejo isto como namoro e sim um aproveitamento com uma guarda prisional sim isto mesmo que você está lendo!

Em outros casos já pegámos em flagrante guardas aos beijos com reclusas na casa de banho.

Acho que devia sim ter um sistema em que as mulheres pudessem ter o seu ponto de privacidade respeitado e não violado.

Aqui tem muitas confusões nas celas porque muitas vezes colocam mulheres juntas, ali vivem, se gostam, começam uma relação e muitas das vezes como ficamos 24h por dia sem fazer nada, estas pessoas terminam na noite indo para a cama uma da outra e ali rola alguma coisa, muitas das vezes as colegas ajudam, outras fazem disto um grande problema e é onde gera torturas porque dão os castigos.

Fico muito revoltada sou a favor do amor e da paz e do sexo consentido. Agora vou falar de mim sou M. J. reclusa deste sequestro estatal, tive uma relação com uma mulher reclusa, na época estava de castigo. 6 meses de castigo a viver numa cela sozinha de menos de dois metros, isto mesmo, 6 meses tudo isto porque denunciei algumas coisas erradas daqui para a provedora da justiça e nesta época eu e a S. nos gostámos muito, só que estávamos proibidas de ter contacto eu não aceitava ela também não começámos uma luta, discussões com guardas, comissário etc… e quase todos os dias nos levavam ao psiquiatra para nos darem medicação, a S. começou a ter uma depressão pelo afastamento e eu comecei a decair também ela era o meu apoio e pelo conselho da psiquiatra ao E.P. desceram a Sofia para o primeiro piso para uma cela ao lado da minha, a gente só podia estar no corredor, sentadas no chão porque não há bancos. Um dia sou chamada ao escritório com ela e a minha educadora que era a mesma dela, a Dra chama-nos e diz – “Olá sabe porque estou aqui? – E nós dissemos – “Não!”. E ela disse – “Tenho um alto de notícia da guarda F. que viu vocês na fila da medicação abraçadas e a S. com as mãos dentro da sua calça!.” Bom quando a mulher nos diz aquilo eu quase morri de vergonha! Parei, pensei e disse – “Dra. a guarda F. não é a mesma que eu denunciei? Não é a mesma que me trancou na cela com fome e que fiz queixa e que inclusive lhe comuniquei?.” Ela a educadora desconversava e eu digo – “Olha aqui você está a falar com quem? Sou mãe de filhos e jamais me prestaria a este papel, me respeite e nos respeite, nunca fizemos isto e fui perseguida pelo fato de tentar ter esta relação” -, e na verdade contando o lado bom tinha uma guarda que gostava muito de mim e dizia – M.J. hoje ficas à vontade” -, e nos deixava ficar na cela as duas durante as duas horas que dava que era a hora de jantar, isso seria um segredo nosso, e eu sentia que estava fazendo um crime, mas vendo por outro lado dava uma adrenalina e tornava o momento único, porque ali só era eu e ela e a gente falava de tudo, chorava, ria, planeava, naquele momento só ela me entendia não era sexo era só carinho afeto e um abraço caloroso, chorar um choro dividido de alguém que se entende que sabe o que se passa!

Voltando à Violência Sexual

A violência sexual é séria nos deixa cicatrizes profundas. Eu vejo este tipo de violação acontecer todos os dias, todas as horas. Agora volto a outra questão! Em 2020 até 2021 tentei visitas com um homem recluso que até então criei uma grande afinidade, trocámos cartas durante mais de 2 anos e decidimos nos conhecer, a lei diz que só é preciso 6 meses de correspondência e o certo é que até à data de hoje tudo o que fiz, pedido e ele também fez, foi negado mas a lei permite e o E.P. viola. Depois dizem que as pessoas são promiscuas. E dão castigos pesados simplesmente pelo toque que não temos, pelo sequestro estatal.

Triste mesmo fico pensando aqui às vezes comigo mesma, aprendemos a gostar de uma pessoa, somos humanos precisamos de toque, cheiro, carinho amor, intimidade, sexo e só porque estamos presas somos proibidas de o fazer! Mas o pior é pensar que se eu quiser ter sexo para ter vantagens aqui dentro do “Sistema” eu só preciso fazer sexo oral ou anal, ou qualquer tipo de sexo com um guarda que goste do meu corpo que me deseje, ou pior que me diga na minha cara que eu sou o fetiche dele, que deseja minha boca, ou até mesmo o que fazem e dizem para colegas minhas!

Aqui fica um pouco do meu relato puro e honesto e verdadeiro…

Espero um dia sair daqui e que isto não prejudique o meu psicológico porque a minha vida sexual não sei como vai estar depois de tantos traumas.

P.S.: Na minha humilde opinião a violação já começa pelo sistema.

Já ouvi aqui tantos relatos que um dia quero compartilhar com vocês.

Ainda não falei dos contactos dos guardas com as reclusas quando vão de precária, quero dizer os encontros que acontecem nas precárias! Um dia falamos sobre isto!

Aqui vai um grande beijo de luz sorte para todos que lerem esta carta.”

About Vozes de Dentro

Somos um grupo de pessoas presas, presos e pessoas que do outro lado dos muros acompanham e participam, de diferentes formas, nas lutas das pessoas reclusas e das suas famílias. As pessoas privadas de liberdade e especialmente as pobres, racializadas, mulheres, transgéneros e crianças enfrentam condições desumanas, violência física e psicológica nas prisões. As histórias destas pessoas são altamente invisibilizadas, e, por isso, expostas a constantes violações dos seus direitos fundamentais (1). Em particular, Portugal é dos países europeus onde mais morrem reclusa/os (2) e as prisões portuguesas têm sido por diversas vezes alvo de críticas do Conselho da Europa, nomeadamente do Comité Contra a Tortura. Conjuntamente, encontra-se entre os países da Europa onde se condena mais a penas de prisão, por períodos mais longos e onde a sobrelotação é uma realidade. Os índices de encarceramento são altos especialmente entre as mulheres, também condenadas a penas maiores, e não existem dados oficiais sobre o número de pessoas transgénero, bem como sobre a pertença étnico-racial (1, 3). Testemunhos de reclusas e reclusos e seus familiares indicam o frequente recurso a fármacos sedativos, anti psicóticos e anti convulsivos sem uma conexão clara com a necessidade clínica dos próprios fármacos, mas mais claramente em coerência com a atitude repressiva do sistema prisional (4). A maioria dos estabelecimentos prisionais caracterizam-se por graves problemas nas infraestruturas, péssima alimentação, falta de acesso a bens e produtos essenciais. Os cuidados de saúde são também precários e deficitários, com a maioria de profissionais de saúde subcontratada. A atividade laboral remunerada é parca e traduz-se, maioritariamente, na exploração e as ofertas formativas são poucas. Isto, aliado à baixa aplicação de medidas de flexibilização de penas, ao inexistente apoio para a reinserção social, ao isolamento social a que ficam sujeitas as pessoas presas com severas limitações de contato com as suas famílias e comunidades e os percursos prévios de institucionalização que muitas viveram previamente à prisão, configura os ciclos de pobreza-exclusão-institucionalização-violência (5). Na prisão as discriminações, violências e a exploração persistem e são exacerbadas remetendo-as para invisibilidade, abandono social e marginalização. O objetivo deste grupo é de visibilizar a realidade obscurecida das prisões e pensar coletivamente possíveis ações de apoio para quem está dentro. View all posts by Vozes de Dentro

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