Carta de R. F. presa em Portugal para Angela Davis

6-11-22

Para: Angela Davis

Refletir, Reagir, Recorrer, Reclamar, Resistir.

Cara Angela meu nome é Resistência e a regra será sempre a liberdade.

Aqui na prisão de X sou um número. Mas na verdade sou R. F.. Sou mãe de 2 filhos que estão numa instituição. Sou imigrante brasileira condenada a mais de 5 anos de prisão, presa à convicção por cumplicidade por tráfico de drogas, nunca tinha sido presa antes na vida, e nunca pensei nesta hipótese. Entrei neste inferno cavernoso do Sequestro Estatal em 20XX meu mundo caiu, desde então tenho uma visão diferente de tudo aquilo que o mundo e a sociedade aí fora fala. Cara Angela aqui ao entrar me deparo com drogas, idosos, jovens, mães gente de toda raça, mas tem um porém, o Racismo, Xenofobia, Homofobia, agressões de guardas, tanto físico, como psicológico são diários, as torturas frequentes, isolamento que nem a pessoa sabe porque foi isolada, eu já passei por tudo, isolamento de 6 meses, sem saber o porquê, depois mais 4 meses, já fui ao castigo do leve ao pior de 3 dias, 4 dias, e 8 dias nua do jeito que vim ao mundo. Em cima de uma pedra, só por reivindicar meus direitos. Cara Angela eu 52 aqui nunca deixei de ser livre de pensamento esta liberdade os juízes o Sequestro estatal nunca me tirou e só por isso sou uma das reclusas mais castigadas pelo sistema prisional e toda sua cúpula do poder que gere esta máquina do ódio, da falta de respeito pela vida humana deixando pessoas morrerem, se matando pela falta de cuidado, falta de alimentação e entre outras coisas. Cara Angela, aqui neste Estabelecimento Prisional só temos direito a 3 coisas, Água, luz e muita medicação de resto não temos mais nada. Somos mulheres e somos ignoradas pelo Comissário, a Diretora, não falam connosco. Educadoras não fazem nada. Técnicas do IRS não fazem nada, no fim de tudo somos os números que geram milhões ao estado e à grande máfia que comandam as prisões. Cara Angela aqui em X só temos 2 horas de ar puro, que é a hora do recreio. Pela manhã e tarde. Aqui tem um mini mercadinho, mas só o 3 % de toda a população presa trabalha, para ganhar 30 euros – 40 euros. Cara Angela e o resto? Quem tem família que pode ajudar ainda se safa, e a outra metade? Considero isto uma guerra fria sem bombas, guerra de fome, do frio, da doença mental, de quem entrou aqui sem medicações e hoje são dependentes delas para viver, quase todos os dias vejo tentativas de suicídio. Nestes anos já vi tantas vidas irem, vidas que já estavam assinaladas que iam fazer o que o sistema fez, nada. A sociedade aí fora não sabe o que acontece dentro dos muros de betão, na verdade Angela escondem, moqueiam, mentem, aqui passamos fome, ficamos doentes, nos tiram tudo quando vamos presas, filhos, liberdade e querem nos manter caladas, aqui o preto, o pobre, o cigano, o estrangeiro é maltratado, ignorado. Cara Angela vivemos numa cela pouco mais de 5 metros quadrados 4 mulheres juntas sem espaço sem privacidade totalmente amontoadas, aqui vejo dor, raiva, ódio, provocado pela máquina do desemprego que fabrica criminoso, aqui como Brasileira falo português brasileiro mas constantemente sou tratada xenofobicamente pelo meu português pelas guardas prisionais. Já ouvi de tudo, tudo mesmo. Cara Angela os juízes têm o dever de ter a faculdade de julgar segundo os ditames da sua consciência, que se presume inflexível e reta conforme o critério da sua razão, que se supõe lúcida e esclarecida, e as diretivas da sua inteligência, que mercê de prévios estudos se reputa culta e abarrotada de ciência jurídica. Podem estes postulados falhar na prática? Mas os erros da justiça esgotados todos os recursos, devem ser tidos por mazelas incuráveis, que os litigantes vencidos hão de suportar como suportariam o câncer ou um terramoto.

Cara Angela quero sair daqui com um intuito formalizado:

Esvaziar as prisões!

Dialogando nas ruas contar minha história dizer a verdade sobre o buraco cavernoso do Sequestro Estatal realidade tão pouco falada e desconhecida pela sociedade, por um mundo melhor, pela inclusão e não exclusão, pela força da segunda oportunidade. Pelas mães que não vêm seus filhos a crescerem pelo vazio, a saudade, criado pelo muro de betão.

Cara Angela o que esperamos de um mundo onde já nascemos pobres, pretos, indígenas, ciganos, no mundo da guerra, da fome da máquina do desemprego, com a força do capitalismo, onde o rico cada vez fica mais rico, e o pobre cada vez fica mais pobre, aí só se responde às perguntas. Resposta: Máquina e fábrica do crime. Cara Angela há uma questão quem nos acusa e nos condena nunca passaram fome, não são de família de pobre, estudaram toda a vida em escolas particulares, tiveram mesada, desconhecem todo o lado aqui mencionado, e julgam com uma falta de sensibilidade, compaixão, muitas muitas das vezes, ou a maioria das vezes ao condenar uma mãe pelo crime à convicção por cumplicidade como o meu caso estes juízes condenaram eu e meus 2 filhos. Na época meus filhos uma menina de 4 anos e um menino de 7, e eu vim para o Sequestro Estatal, e meus filhos até hoje vivem numa Instituição, fomos todos presos e continuamos presos até quando não sei, hoje minha filha tem 7 anos, meu filho 10 anos, estamos todos dilacerados pela dor desta prisão, que me tira até o direito de ser mãe, e dos meus filhos terem a mãe, o Sistema acha que já tenho muitos direitos, 1h [de visita com eles por semana]. Às vezes choro quando não consigo falar ao telefone com eles e já ouvi de muitos guardas – devias ter pensado nos teus filhos antes.

Por que razão Portugal é o campeão dos presos preventivos? Por mera “revanche” por capricho? Por prazer pessoal de quem prende? Para esconder casos em que não prendem ninguém.

Há aqui mulheres que esperam 10, 11 meses pela Acusação ás vezes são notificadas no ultimo dia dos 12 meses de prisão preventiva, o que hão de fazer? É injusto que o caso demore 6 meses ou um ano para investigar, prendem por prazer pessoal, por “vendetta” e para vexame prendem com facilidade para alimentar o “Sistema” e como uma oficina de bate-chapa quanto mais acidentes ocorrem e mais chapa batida houver melhor! Mais oficina terá. O mesmo sucede com a agência funerária o dono aborrece-se de morte quando não há clientes para colocar no jardim das tabuletas, a prisão envolve um “negócio” que o Estado suporta, educadores, guardas, enfermeiros, médicos fornecedores das prisões etc.. Além dos advogados que muitas vezes sobrevivem só das defesas oficiosas, tribunais etc… Juízes que prendem e julgam o ser humano mantém a dignidade humana fora e dentro dos muros da cárcere aquela onde nós, eu 52 e outras 3 companheiras numa cela de 5 metros quadrados, é desumano. Será que o senhor juiz gostaria de se vê, ou vê um filho dele nesta situação, afinal, são eles que julgam.

Cara Angela os Juízes Portugueses estão violando a lei: Os Juízes podem diminuir as prisões preventivas mas não querem.

O artigo 6° da Convenção Europeia dos Direitos dos homens, prescreve que “qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada num prazo razoável”.

O artigo 9° do Pacto Internacional dos Direitos civis e políticos “Toda pessoa detida será informada no mais breve prazo razoável a ser posta em liberdade. A prisão preventiva não deve constituir regra geral “em 15-16 Outubro 1987 n°30- pág. 180 nas jornadas De direito na Relação de Enoxa: Tribuna da Justiça n° 16-04-1986 pág. 5 (Senhor Juiz Desembargador Ricardo da Velha). Esvaziar as prisões.

Cara Angela, “A vida é como um hospital onde quase tudo faz falta, a cura é difícil. Morrer é ter alta” Fernando Pessoa.

Cara Angela como podemos mudar tudo isto? Eu não sou 52, e sim R. F.

Denunciando ao máximo, o buraco cavernoso, torturador, alguém tem que mostrar a cara e eu quero mostrar a minha, eu tenho gana de dizer o que vivi e o que vivo, até aos dias atuais.

Cara Angela vivo nestes anos na cela de 5 m2 fria húmida vegetando neste mundo de ingratidão, sofrimento, tristeza e angústia dor saudade, luto pelo filho que perdi este ano, preocupação, tortura, noites sem dormir, dor da saudade dos pequenos que estão nas mãos de estranhos”. O Estado Português “sequestra” os descamisados bagatelas quase sempre menores ou circunstâncias… enquanto os “barões da alta finança” pululam nas piscinas e praias de Cascais, Algarve e “resorts” escondidos do zé-povinho.

Cara Angela aqui sofremos de Abuso de Autoridade relatórios montados, participações que não existe, o sistema tá aqui pra foder a vida do preso, não há a tão sonhada ressocialização e a tal propaganda enganosa do Sequestro Estatal. A fábrica e a máquina do desemprego da fome dá tudo que o sistema cavernoso precisa, encher prisões e eles ganharem milhões. Mantêm as pessoas medicadas para não reagirem, ficarem numa cama dormindo todo o dia, a comida vem sempre inconsumível sem proteína sem verdurasarroz batata e massa carne podre, peixe podre sobrevivemos de pão água, e da ajuda de Deus, comer aqui é dia de festa quando vem a comida consumível.

Estamos num estabelecimento prisional onde predomina o Racismo, Xenofobia, Misoginia, Sexismo, homofobia, nepotismo, falta de cuidados médicos, total desrespeito pela vida humana, o desprezo pelo próximo chega corroer na alma de quem tem humanidade.

Estou dilacerada pelo sistema cavernoso mas sou Resistência e não esqueço dos 5 “R” Refletir, Reagir, Recorrer, Reclamar, Resistir e a regra é a liberdade, é onde me apego na esperança de não desistir de mim própria e daquelas que vão ficando ou que vão entrar, peguei esta luta pra mim, porque sou mãe, mulher, miscisgenada, uma mistura de Índio do Amazonas, preto, branco, sou a famosa Mulher Parda, mas me considero Índia e Negra com orgulho e paixão. Patriota pela história do meu pais que foi tão escravizado, saqueado desde 1500 Brasil 500 anos tudo igual.

A falta de estrutura familiar também trás as pessoas ao crime violência, todos sabemos que o seio Familiar é importante para o futuro de um ser humano, o Estado o Sistema os Juízes na hora de penalizar esquecem isso!

Não me sinto criminosa e nunca me sentirei jamais, sou filha de uma mãe solteira filha de um promissor vagabundo filha bastarda filha que nunca conheci o pai, sou o reflexo daquilo que o Estado e o Sistema exclui, mas prós olhos da sociedade sou mais uma bandida criminosa, não matei, não roubei, não trafiquei, fui presa à convicção por cumplicidade e trabalhei descontando pro Estado e nada contou, só queriam era mesmo era me deixar aqui como gado. Só recebi acusação 11 meses depois, quando comecei a me defender, colocaram meu processo em segredo de Justiça, ou seja, não houve investigação, porque eu dei o dinheiro pra própria policia, meu caso envolveu Embaixada e como sou a pequena paguei pelo grande mesmo com testemunhos.

Cara Angela quero chamar atenção para um fato que não é falado, todas as brasileiras correio de drogas que vem do Brasil para Portugal trazem um tanto de droga exemplo trazem 10kg e são apresentados 4Kg todas passam por isso, a policia é a máquina do crime organizado, e elas querem cooperar para com a policia entregar a tal mala e a própria não deixa já as trás direto ao buraco cavernoso do Sequestro Estatal.

Quando fui presa, fui brutalmente espancada pela polícia, cheguei na prisão nunca me levaram ao hospital mas se tava presa seria a prisão que devia me levar não ?
Não cometi tal crime que fui acusada. Nunca houve prova, só a prova constituída em sede de julgamento a palavra dos policiais, que segundo os juízes são providas de credibilidade e a minha não pela minha condição social.

Angela tenho tanta sede de justiça pelo que me aconteceu, principalmente pelo que vivemos todas aqui dentro deste inferno. Já tive um tempo que quase tirei minha própria vida

Na época tive ajuda das brasileiras, que me ajudaram para sair do buraco não deixando eu tomar mais medicações, pouco-a-pouco eu fui tomando a consciência de volta. O sistema me drogava 24h por dia!

Cara Angela, aqui tem tantos castigos, aliás digo “torturas” guardas que não gostam de você ou quer subir de posto e vive te insultando para você reagir e te dar participação e daí você vai ao castigo.

Esta prisão tem 4 alas, esta ala X tem muitas mulheres e só 6 cabines telefónicas, todas nós temos direito a 3 ligações de 5 minutos cada ou seja se ligo para os meus filhos tenho de falar em 5 minutos com os 3, é um abuso, enquanto em outras prisões as ligações são de 20 minutos cada ligação, a prisão viola todos os direitos, não temos direito de usar roupas que mostre o ombro, vestido e saia só até o joelho, aqui tem uma ditadura é somente nesta prisão.

As ofensas por parte das guardas são constantes os abusos. Fico tão indignada com isso que às vezes penso se não tivesse meus filhos eu já tinha espancado uma delas juro por Deus, é complicado viver isto ao vivo e a cores.

52 aguarda numa cela fria húmida de 5m2 no E.P. X pela “boas novas” que a juíza possa lhe comunicar, não é fácil obter o “Bem” (Liberdade) pois o usual é aplicar o “Mal” (prisão).

A vida continua hoje com um pé na prisão, amanhã na rua, num futuro que se espera longínquo, no Tribunal Divino, algures entre Saturno, Urano e Nepheles ( Asteroide no 431, descoberto por Auguste Charlois em 18-12-1897) onde todos seremos julgados pelos julgamentos que fizemos ao longo da nossa mísera existência terrena “Por tuas palavras serás justificado e por tuas palavras serás condenado” São Mateus 12,37.

Cara Angela aqui deixo uma mensagem aos meus amados filhos.

Meus queridos filhos.

Daqui a nada vamos ter tudo, vamos ser luz no silêncio escuro. Esquecer os muros que nos separam. As sombras espessas dos dias incertos. Vamos ser livres pela voz.

Trocar promessas de dias melhores. Vamos respirar a liberdade que nos espera.

Virar as costas aos medos que nos separaram e nos prenderam. Agora podemos estar presos, mas ninguém vai preso por ter roubado a esperança de ser livre.

Querida Angela Davis

Obrigado para compartilhar sua história comigo. Li o livro e adorei, sua luta é nossa luta conte comigo.

Eu Mãe, filha, mulher e reclusa.

R. F.

About Vozes de Dentro

Somos um grupo de pessoas presas, presos e pessoas que do outro lado dos muros acompanham e participam, de diferentes formas, nas lutas das pessoas reclusas e das suas famílias. As pessoas privadas de liberdade e especialmente as pobres, racializadas, mulheres, transgéneros e crianças enfrentam condições desumanas, violência física e psicológica nas prisões. As histórias destas pessoas são altamente invisibilizadas, e, por isso, expostas a constantes violações dos seus direitos fundamentais (1). Em particular, Portugal é dos países europeus onde mais morrem reclusa/os (2) e as prisões portuguesas têm sido por diversas vezes alvo de críticas do Conselho da Europa, nomeadamente do Comité Contra a Tortura. Conjuntamente, encontra-se entre os países da Europa onde se condena mais a penas de prisão, por períodos mais longos e onde a sobrelotação é uma realidade. Os índices de encarceramento são altos especialmente entre as mulheres, também condenadas a penas maiores, e não existem dados oficiais sobre o número de pessoas transgénero, bem como sobre a pertença étnico-racial (1, 3). Testemunhos de reclusas e reclusos e seus familiares indicam o frequente recurso a fármacos sedativos, anti psicóticos e anti convulsivos sem uma conexão clara com a necessidade clínica dos próprios fármacos, mas mais claramente em coerência com a atitude repressiva do sistema prisional (4). A maioria dos estabelecimentos prisionais caracterizam-se por graves problemas nas infraestruturas, péssima alimentação, falta de acesso a bens e produtos essenciais. Os cuidados de saúde são também precários e deficitários, com a maioria de profissionais de saúde subcontratada. A atividade laboral remunerada é parca e traduz-se, maioritariamente, na exploração e as ofertas formativas são poucas. Isto, aliado à baixa aplicação de medidas de flexibilização de penas, ao inexistente apoio para a reinserção social, ao isolamento social a que ficam sujeitas as pessoas presas com severas limitações de contato com as suas famílias e comunidades e os percursos prévios de institucionalização que muitas viveram previamente à prisão, configura os ciclos de pobreza-exclusão-institucionalização-violência (5). Na prisão as discriminações, violências e a exploração persistem e são exacerbadas remetendo-as para invisibilidade, abandono social e marginalização. O objetivo deste grupo é de visibilizar a realidade obscurecida das prisões e pensar coletivamente possíveis ações de apoio para quem está dentro. View all posts by Vozes de Dentro

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