A prisão é escravidão

 

Este texto tem como propósito esclarecer algumas questões sobre a situação atual da exploração laboral de pessoas privadas de liberdade, sustentada por acordos entre o Estado e empresas e corporações privadas que apostam em programas de trabalho prisional. Este sistema de escravidão permite disparar os lucros destas empresas, corporações e seus investidores, bem como do estado, negando às pessoas presas o acesso a contratos de trabalho, direitos laborais e a salários, ao mesmo tempo que falsamente prometem melhores condições de detenção ou até a provisão de um “direito do recluso”, tal como o CEP (código de execução de penas) enquadra o dito “trabalho prisional”.

É importante lembrar que há poucas décadas, o trabalho prisional era obrigatório. Atualmente, a retórica reformista penitenciária diz que este é um direito e persiste na mentira de que é um meio de ressocialização, omitindo o tipo de trabalho não especializado, as condições de exploração e os maus tratos a que são sujeitas as pessoas presas que trabalham nas prisões. Portanto, escravatura é o que define desde sempre o trabalho prisional. O Estado, a Igreja, a Santa Casa da Misericórdia do Porto, as autarquias, as grandes, médias e pequenas empresas e as corporações de diversos sectores lucram com o trabalho escravo nas prisões. A recente definição legal do trabalho em meio prisional como um suposto direito e meio de ressocialização serve para mascarar e desresponsabilizar o estado, as entidades do terceiro sector e as empresas privadas por ele subcontratadas relativamente à ausência de oferta de trabalho em grande parte das prisões e sobretudo de trabalho remunerado com direitos.

Não podemos considerar condições dignas de trabalho quando as pessoas presas são sujeitas a um sistema de prémio/castigo para terem acesso à atividade laboral, e as remunerações rondam entre os 2€ a 3,50€ por dia, ou entre 5 cêntimos (valor pago para coser etiquetas) a 75 cêntimos (valor pago para coser um par de sapatos) por peça. Os horários de trabalho na prisão são em média 6h fora da cela, em oficinas exíguas, no entanto, há quem leve trabalho para a cela, sujeitando-se a jornas de mais de 8h de trabalho. Estas remunerações traduzem-se em “salários” mensais entre os 30€ a 100€ (estimativa da média de valor máximo auferido), além de que metade do que recebem fica cativo na “conta de recluso” que será entregue aquando da libertação; ou para as pessoas presas que têm despesas judiciais para pagar, o dinheiro que ganham é automaticamente descontado do mísero “salário”. Não há qualquer tipo de direitos e garantias, tais como: contrato de trabalho, tratamento digno, ausência de assédio moral e de assédio sexual (várias mulheres presas contam-nos situações de assédio sexual e moral), remuneração salarial digna, acesso a subsídios de acidentes de trabalho, de alimentação, de doença, de férias e de natal, direito a férias, direito à greve e à reivindicação de direitos, entre tantos outros. Partilhamos a carta de uma jovem mulher imigrante presa em Portugal onde nós fala sobre a escravidão na prisão https://vozesdedentro.noblogs.org/post/2023/05/10/carta-sobre-a-escravidao-numa-prisao-feminina/ )

As pessoas presas em regime comum passam uma média de 17-20h fechadas nas celas (a maioria em celas diminutas sobrelotadas), o que, aliado à quase ausência de atividades formativas, desportivas e culturais, às dificuldades de acesso a bibliotecas, às escassas chamadas telefónicas a que têm direito – pagas pelas próprias presas a preços de cabine telefónica -, à escassez de produtos higiénicos, alimentares e outros essenciais para a sua sobrevivência, e à necessidade de cumprir com o PIR (plano individual de readaptação) para terem acesso a medidas de flexibilização de penas e saídas precárias, são condicionantes que as obrigam a trabalhar em regime de escravidão, nas prisões em que é possível.

Sabemos bem que, fora das prisões, a exploração laboral, as remunerações abaixo da média, a ausência de direitos, os maus tratos e assédio moral e sexual ou até situações de escravatura são a realidade para muitas pessoas, sobretudo mulheres, pobres, racializadas e imigrantes. Dentro das prisões, a maioria das pessoas, antes de serem presas, eram sujeitas ao desemprego e a este tipo de trabalhos sem quaisquer garantias e direitos. Quando privadas da liberdade a sua situação piora. Quando saem, piora ainda mais, devido ao estigma e à discriminação exponenciadas porque ninguém quer dar trabalho a um/a “ex-reclusa/o”.

O Estado não permite o acesso público a informação organizada e detalhada sobre protocolos estabelecidos entre a DGRSP, as empresas privadas, IPSS, autarquias ou outras entidades que fazem uso da mão obra prisional e vendem produtos e serviços para preses, as remunerações pagas às pessoas presas, os lucros que o Estado e as entidades privadas auferem com o uso de mão de obra e nos produtos e serviços que preses compram: no sector alimentar, das telecomunicações (a altice, por exemplo, lucra milhares com os altos preços praticados dentro das prisões), entre outros. Também não é possível ter acesso a informação sobre as empresas abastecedoras da alimentação e das cantinas nas prisões onde pessoas presas, para sobreviver, têm de comprar produtos essenciais de baixa qualidade, a preços mais altos com IVA a 23% e sem direito a ter factura com o NIF próprio. Apresentamos uma lista de empresas que usam ou usaram a mão de obra de pessoas presas em diversas prisões portuguesas apontadas por presas e familiares de presos Birkenstock; Ikea; Inditex; Polismar; Pocargil; Unicer; Esferipol; Idepa; Reklusa; Legaltex; AKA design; Lobo Taste Crochet.

Desde a fundação do penitenciário que a retórica reformista assenta em discursos ideológicos de humanização de penas, e ao longo do tempo assistimos à reactualização dos mesmos, como podemos ver nas recomendações da ONU ou do COE sobre alternativas ao encarceramento. Contudo, esta retórica reformista perversamente contribui para a legitimação da tortura e escravidão que configuram os sistemas carcerários desde sempre. A prisão como um sistema que perpetua a escravatura perdura até aos dias de hoje, através do encarceramento em massa de pessoas pobres e racializadas, e pela expansão do estado carcerário e do mercado penal e militarista e os seus programas prisionais “inovadores” que prometem a humanização ou até o fim da prisão e a reinserção, mas que na prática resultam sempre no mesmo – no sacrifício, na exclusão, castigo e exploração de pessoas e crianças capturadas pelo sistema carcerário.

Em Portugal, verifica-se esta tendência reformista assente na privatização e expansão de medidas carcerárias, propagada nas últimas décadas, nos Estados Unidos da América, e noutros países da Europa e do mundo, tal como nos demonstra o acordo e a colaboração da Prison Innovation Systems com a DGRSP. As organizações estatais, do 3º sector e privadas que defendem estas ideias propõem um encarceramento difuso e de baixa intensidade, incluído nas cidades, em estruturas semelhantes a casas, condições que os prisioneiros obteriam supostamente em troca da reintegração no mercado de trabalho, desempenhando funções nas próprias estruturas, nos bairros que essas estruturas abrigam e em empresas privadas.

Notícias recentes de vários países da Europa revelam a contínua americanização do sistema carcerário e o uso do encarceramento em massa. Nas últimas décadas, cada vez mais mulheres e crianças são encarceradas por supostas infrações de valor insignificante: as primeiras, por exemplo, por não pagar impostos, como a taxa de posse e uso da televisão, e as segundas por pequenos furtos cometidos em grupo ou até mesmo violência doméstica. Nos países que recebem os chamados migrantes irregulares multiplicam-se os centros de detenção, onde pessoas de todas as idades e géneros são mantidas indefinidamente em condições subhumanas apenas porque querem construir as suas vidas noutro país.

Acreditamos que não há prisão possível e que as medidas necessárias e urgentes devem se pautar pela abolição de todas as prisões e provisão de recursos às comunidades -, tais como: o acesso a uma habitação digna, à saúde, a soberania alimentar, a educação, a participação nos processos de tomada de decisão política, e na resolução de conflitos através da responsabilização comunitária, etc – e não no investimento na polícia, no securitarismo e em instituições carcerárias que alimentam a indústria militarista e penal.

Não podemos deixar de pensar que o investimento num setor tão lucrativo e com receitas constantes, como o mercado de encarceramento atrai grandes capitais envolvendo cada vez mais organizações e instituições públicas e da sociedade civil. Então, como não pensar também que tais investimentos exigiriam um número ainda maior de pessoas que participem como trabalhadoras encarceradas nas suas celas espalhadas pelas cidades e pelos campos?

O que podemos fazer para combater tais mentiras e evitar a construção de novas prisões, sejam elas grandes ou pequenas? Provavelmente mantermo-nos atentas e concentradas, conhecer as artimanhas do sistema industrial-carcerário e rejeitar a punição como forma de resolver conflitos. Participar ativamente na vida e na defesa das nossas comunidades, aprender a resolver os conflitos dentro delas sem esperar nenhuma resolução do estado, de partidos, tribunais ou das polícias.

Contra todas as prisões e formas de escravidão!

Pela liberdade de todes!

Vozes de dentro

About Vozes de Dentro

Somos um grupo de pessoas presas, presos e pessoas que do outro lado dos muros acompanham e participam, de diferentes formas, nas lutas das pessoas reclusas e das suas famílias. As pessoas privadas de liberdade e especialmente as pobres, racializadas, mulheres, transgéneros e crianças enfrentam condições desumanas, violência física e psicológica nas prisões. As histórias destas pessoas são altamente invisibilizadas, e, por isso, expostas a constantes violações dos seus direitos fundamentais (1). Em particular, Portugal é dos países europeus onde mais morrem reclusa/os (2) e as prisões portuguesas têm sido por diversas vezes alvo de críticas do Conselho da Europa, nomeadamente do Comité Contra a Tortura. Conjuntamente, encontra-se entre os países da Europa onde se condena mais a penas de prisão, por períodos mais longos e onde a sobrelotação é uma realidade. Os índices de encarceramento são altos especialmente entre as mulheres, também condenadas a penas maiores, e não existem dados oficiais sobre o número de pessoas transgénero, bem como sobre a pertença étnico-racial (1, 3). Testemunhos de reclusas e reclusos e seus familiares indicam o frequente recurso a fármacos sedativos, anti psicóticos e anti convulsivos sem uma conexão clara com a necessidade clínica dos próprios fármacos, mas mais claramente em coerência com a atitude repressiva do sistema prisional (4). A maioria dos estabelecimentos prisionais caracterizam-se por graves problemas nas infraestruturas, péssima alimentação, falta de acesso a bens e produtos essenciais. Os cuidados de saúde são também precários e deficitários, com a maioria de profissionais de saúde subcontratada. A atividade laboral remunerada é parca e traduz-se, maioritariamente, na exploração e as ofertas formativas são poucas. Isto, aliado à baixa aplicação de medidas de flexibilização de penas, ao inexistente apoio para a reinserção social, ao isolamento social a que ficam sujeitas as pessoas presas com severas limitações de contato com as suas famílias e comunidades e os percursos prévios de institucionalização que muitas viveram previamente à prisão, configura os ciclos de pobreza-exclusão-institucionalização-violência (5). Na prisão as discriminações, violências e a exploração persistem e são exacerbadas remetendo-as para invisibilidade, abandono social e marginalização. O objetivo deste grupo é de visibilizar a realidade obscurecida das prisões e pensar coletivamente possíveis ações de apoio para quem está dentro. View all posts by Vozes de Dentro

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