Carta de mulher presa – Agosto de 2022

08-2022

L. nºx, EP X

Quero pedir desculpa se esta minha carta se encontra com erros ortográficos, uma vez que fiz os estudos em Espanha o que me referencia por não dominar a ortografia portuguesa 100%.

Tenho 31 anos de idade, vou fazer 32 anos, sou Portuguesa mas com 5 anos de idade fui viver para Espanha onde permaneci até aos meus 14 anos de idade. Até esta idade fui sempre educada pela minha mãe após a separação dos meus pais. Minha mãe sempre deu uma educação muito boa para mim. Frequentei escolas privadas onde concluí o 4º de E.S.O que aqui equivale ao 9ºano. Fazia muito desporto, competições e ginástica rítmica e depois ginástica acrobática artística, entre outras coisas.

Aos meus 11 anos de idade tive um acidente de aviação (um carro me atropelou) e estive 15 dias em coma, 24 pontos na cabeça (tiveram de rapar meu cabelo na altura muito comprido) mais 17 pontos no cotovelo esquerdo e mais 17 no joelho direito, o que me deixou de cadeira de rodas e depois andei de muletas até conseguir andar sozinha. Infelizmente fui privada de exercer o que tanto gostava que era a ginástica artística e essa situação toda tornou-me uma menina rebelde por achar que toda a gente tinha pena de mim, pois eu era muito boa no que fazia, tanto na ginástica como nas aulas.

Comecei a vacilar, a fumar cigarro, ter notas menos boas e a fugir de casa à noite para sair com os “amigos”.

Eu sabia que o meu pai que já faleceu, na altura era alcoólotra e que tinha tido mais 3 filhos e quando eu atingi os 14 anos entre as escapadelas que fazia apareci em coma alcoólico. Lembro de minha mãe me perguntar porque fiz isso e eu responder. Fiz para sentir o que o meu pai sinta que até se esquece de me ligar.

Após mais uns dias tivemos uma grande discussão e pedi para me trazerem para Portugal, e assim a minha mãe fez com muito custo.

Cheguei a Portugal, voltei para a casa onde tinha nascido com meus irmãos mais novos.

A princípio foi tudo lindo, eu não ia à escola, meu pai não se importava se eu bebesse ou fumasse, mas com o tempo começaram as desavenças com a minha madrasta. Pois na altura tinha ciúmes de mim porque eu passava mais tempo com o meu pai e chegou a insultar a minha mãe e aí foi a primeira vez que andei à porrada com alguém.

Para ela não me mandar para um colégio disse ao meu pai que ia sair de casa. E assim fiz, 6 meses em Portugal, não conhecia muita gente e só conhecia a terra onde eu nasci.

Tive de me virar, tinha dias que dormia em casa de amigos até um dia me ter perdido sem saber onde estava. Lembro-me como ontem, passei 3 dias sem comer nem tomar banho, até que um rapaz fez conversa comigo e eu desesperada, contei minha situação, ele disse que sabia de alguém que me podia ajudar e levou-me até essa pessoa, fui a casa dele onde tinha inúmeras mulheres a morar e me perguntavam se eu era virgem ao qual eu respondi que sim.

Depois de eu ter tomado banho, trocado de roupa e ter comido ele fez uma festa na casa onde havia muito álcool. Mas até hoje eu não sei o que tinha no copo porque apaguei e acordei numa cama com as manchas de sangue e a minha vagina a doer. Fui à casa de banho e quando urinei doía mais…

Eu não queria ficar lá, as mulheres se riam e me perguntavam se tinha gostado, eu comecei a chorar. Naquela casa tinha uma empregada que tinha acabado de entrar em casa, e assim que vi ela a entrar eu passei por cima dela e corri a descer as escadas do prédio.

Mas uma vez, não sabia onde estava, andei até chegar ao metro e fui até o X para ir ter com o meu pai. Cheguei lá e pedi dinheiro ao meu pai contendo as lágrimas, mas com medo de ir para um colégio, calei-me.

A partir daí comecei a frequentar, o Bairro Alto, onde pude começar a ganhar dinheiro vendendo droga, depois foi Chelas onde comecei a vender só para mim até ter conhecido o P. filho de um narcotraficante que foi meu companheiro até à sua morte.

Ano xxxx (rusga na casa onde vivia com meu namorado), a polícia entrou com os cães, as ruas cheias de carros patrulhas, revistaram, partiram e acharam droga, duas balanças automáticas, uma caçadeira de canos serrados, dinheiro e um fio de ouro com uma lágrima…

Fui ao juiz e fiquei com termo de identidade e residência, ainda com 19 anos entrei pela primeira vez na cadeia de X para cumprir uma pena de 9 anos e 9 meses.

Os dois primeiros anos levava a cadeia a encher a cabeça todos os dias com ganza, até por vontade própria decidir mudar o rumo da minha vida e inscrevi-me no curso de cozinha com equivalência ao 9ºano português. Após ter concluído o curso fui trabalhar para a cozinha. A minha primeira precária foi me dada aos dois terços da pena, após ter regressado fui à juíza e deu-me um corte de 1 ano. Quando fui avaliada pela juíza eu tinha um relatório bom onde sempre trabalhei conciliando com a escola que frequentei até meio do 11ºano.

Depois pedi para me mudarem de trabalho para a creche por ser um trabalho mais calmo e eu precisava por faltar pouco para sair.

Nesses anos todos, tive sempre visitas de familiares sogro (pai do meu ex-namorado), tio, mãe, tia, primos e amigos e cunhados.

Havia muita coisa cá a acontecer, pessoas novas a morrer por excesso de medicação, pessoas consumidoras que continuavam a consumir por não ter reabilitação, muita gente que não tinha nada e que nós reclusas é que ajudávamos elas, reclusas não aptas psicologicamente a suicidarem-se, essa é das minhas piores lembranças. Lembro de uma rapariga de 19 anos que se suicidou e foi levada arrastada pelo chão num saco preto.

Vi pessoas a tentarem reivindicar os seus direitos e não deixavam e davam porrada nelas algemadas. Desnudamentos após a visita onde me obrigavam a apoiar uma perna na cadeira e a fazer agachamentos e como eu estava com tampão pediram para tirar e voltar a fazer.

Sei de uma ex-colega minha que fizeram desnudamento com luvas para enfiar os dedos no anus e na vagina enquanto ela tossia.

Sei de casos de mulheres que engravidaram de chefes de pavilhão e foram obrigadas a abortar.

Eu própria pedi para sair da cozinha porque o cozinheiro que lá trabalhava me quis obrigar a ter relações sexuais com ele. Após ter acontecido isto, informei o gerente e as guardas e a única coisa que fizeram foi pedir-lhe para se manter distante de mim, mas como fez comigo, fez com muitas outras.

Quando fui trabalhar para a creche em xxxx, fiquei chocada porque não tinha água quente para limpar os meninos. E quando eles se portavam de forma “errada” eram ameaçados a tomar banho de água fria ou obrigados a entrar num quarto completamente escuro.

Eu também tive que fazer um aborto após ter engravidado numa precária, e eu queria aquele filho ou filha, mas se tivesse seria obrigada a cumprir pena até ao fim e tiravam-me as precárias.

Enfim a batalha acabou em xxxx, quando me deram liberdade condicional.

Fui viver com a minha tia e os meus primos e rapidamente arranjei trabalho num estabelecimento de restauração, passado um tempo aluguei um quarto e fechei o contrato para trabalhar como doméstica, foi aí que comecei a namorar com um rapaz que hoje em dia é um grande amigo meu.

Um dia a passearmos fomos à antiga casa onde morava. Por curiosidade bati à porta e quando abriram vi o irmão que eu deixei pequenino já feito um homem e muito lindo, falámos um pouco mas vi que ele tinha feito direta então dei-lhe o meu número e fui embora. No dia a seguir liga-me a minha irmã e marcámos um encontro, foi tão bom…ela já era mãe e eu tia!! Ainda estive também com o mais novo, e com todos diversas vezes.

A minha irmã trabalhava no xxx e disse-me que precisavam de copeiras e fui à entrevista e fiquei. Foi um bom trabalho dentro dos possíveis, estava perto da minha irmã. Mas cometi um grande erro, eu estava chateada com o meu namorado e num dia de folga envolvi-me com quem posteriormente viria a ser o meu companheiro, não usei camisinha e ele não me disse e fiquei infetada (HIV). A partir daí não consegui levar uma vida resolvida para a frente. Com este episódio, demiti-me do respetivo emprego, afastei-me da família, não tendo coragem de informá-los do sucedido, dado que me levou a consumir e a ficar dependente de estupefacientes e ter cometido mais um crime e fiquei com uma depressão agravada.

Como referi antes, o apoio familiar esteve presente e foi um bem essencial para a minha reinserção, mas devido aos anos anos todos que estive detida (7 anos e meio) senti-me completamente perdida e sem reconhecer a sociedade atual.

Não foi nada do que aconteceu após a minha libertação que acontecesse. Pois tinha planos, muitos planos e falharam-me as ferramentas. Sempre tive desejo de poder ajudar e dar a voz a pessoas que se encontram detidas, por eu ter passado pelo mesmo e sabendo que nós não temos voz.

Depois de ter passado toda a fase de depressão e consumos fiquei grávida. Procurei ajuda em vários centros mas foi em vão derivado à forte adição aos consumos, principalmente do meu companheiro.

Fui para B e depois para C para poder estar junto ao meu companheiro. O centro onde estávamos era só para dormir, pois de dia eras obrigado a sair de lá e fazer por ti. Claro que este tipo de programa não impediu que parasse de consumir, mas sempre fiz a medicação para a minha infeção (HIV) pois se não o bebé corria o risco de nascer infetado.

Entretanto fui a tribunal por ter sido apanhada com material roubado, e julgaram-me a uma pena de 1 ano e 2 meses por receptação, mas o grande motivo de ter sido condenada a uma pena efetiva, foi por estar em liberdade condicional. A advogada recorreu da pena mas o tribunal não reduziu a medida de caução.

Fiquei foragida até nascer o meu filho, pela graça de Deus correu tudo bem e aí eu percebi quando olhei para ele que tinha de mudar a minha vida para ele não passar pelo que eu passei.

Estava tão desesperada que andava à procura de documentos falsos para sair do país. Mas com o meu bebé de 3 meses de idade, eu fui identificada pela polícia já com um mandato de captura.

Vim para a cadeia a cumprir uma pena efetiva, no dia que por livre e espontânea vontade comecei a fazer desmame de heroina e metadona a frio. O que me levou a fazê-lo foi o meu filho que ficou com o meu companheiro que posteriormente foi entregue à minha família. Aqui vos deixo uma música com a qual me identifico.

Allen Hallowen

Esta é a história de um velho “gi”

you know?

No meu bairro, no teu bairro ou num bairro por aí

De Odivelas até Paris, e nós K (criminal)

Nigga me teu um fato e sapato

para falar com o juiz

Pagaram o advogado

mas caro do País.

O juiz deu-lhe um saco de rebuçados envenenados a cada “gi”

eu comi 10 rebuçados e um dia eu saí

velho de mais para voltar à street

cansado e sem dinheiro para a minha raiz

o tempo que me resta vou viver em “peace”

tirar os meus putos da “police”

às vezes eu digo aos miúdos aquilo tudo que eu vi e sofri

mas ninguém presta a atenção, ninguém ouve irmão,

se tu sofreste eles sofreram muito mais “You know”

ontem um amigo me disse que viu meu Benjamim

fumando andando na street, odiado pelos “gis”.

Obrigado amigo! Bons olhos virão meu filho

Jeová não deixes que o meu menino siga o nosso caminho.

Putos crescem na ilusão que ao ser bandidos

grão a grão os processos vão enchendo o livro

e só percebem quantos são quando são detidos

os pombos a voar para ti como se fosses milho.

Eu sei meu filho, eu sei o que tu queres fazer

aquilo que tu queres fazer é aquilo que estou a tentar esquecer

banhada estás a planear já muitas tentaram dar

mas nada te faz parar, se calhar pode resultar.

Quem não arrisca não petisca

Io! É verdade

Mas não há maior petisco do que a liberdade

Hoje envio estas folhas com parte da minha história e se assim o desejarem eu continuarei a minha história.

Só quero que saibam que eu nesta minha 2ª reclusão estou de mãos e pés atados. Não tenho visitas, a pouca roupa que tenho, alguma é dada pela cadeia e outras por colegas, não vejo o meu filho. Não tenho uma casa fixa para ficar e preciso muito desse suporte pois tenho os meus objetivos traçados. Construí um plano e acima de tudo tenho uma mentalidade vencedora.

Eu acredito que com processo extraordinário, consigo atingir resultados extraordinários, deixando para trás o trauma destes anos de reclusão.

Quero encontrar a melhor versão de mim num método de alta performance que me vai permitir na área que eu escolher (sociologia-política).

Todos nós temos um grande potencial por explorar. Tenho um grande sonho dentro da área que quero seguir.

Tracei o meu objetivo para investir 100% na aprendizagem e no conhecimento para poder ser excelente.

Por aqui me despeço até um dia próximo espero eu.

About Vozes de Dentro

Somos um grupo de pessoas presas, presos e pessoas que do outro lado dos muros acompanham e participam, de diferentes formas, nas lutas das pessoas reclusas e das suas famílias. As pessoas privadas de liberdade e especialmente as pobres, racializadas, mulheres, transgéneros e crianças enfrentam condições desumanas, violência física e psicológica nas prisões. As histórias destas pessoas são altamente invisibilizadas, e, por isso, expostas a constantes violações dos seus direitos fundamentais (1). Em particular, Portugal é dos países europeus onde mais morrem reclusa/os (2) e as prisões portuguesas têm sido por diversas vezes alvo de críticas do Conselho da Europa, nomeadamente do Comité Contra a Tortura. Conjuntamente, encontra-se entre os países da Europa onde se condena mais a penas de prisão, por períodos mais longos e onde a sobrelotação é uma realidade. Os índices de encarceramento são altos especialmente entre as mulheres, também condenadas a penas maiores, e não existem dados oficiais sobre o número de pessoas transgénero, bem como sobre a pertença étnico-racial (1, 3). Testemunhos de reclusas e reclusos e seus familiares indicam o frequente recurso a fármacos sedativos, anti psicóticos e anti convulsivos sem uma conexão clara com a necessidade clínica dos próprios fármacos, mas mais claramente em coerência com a atitude repressiva do sistema prisional (4). A maioria dos estabelecimentos prisionais caracterizam-se por graves problemas nas infraestruturas, péssima alimentação, falta de acesso a bens e produtos essenciais. Os cuidados de saúde são também precários e deficitários, com a maioria de profissionais de saúde subcontratada. A atividade laboral remunerada é parca e traduz-se, maioritariamente, na exploração e as ofertas formativas são poucas. Isto, aliado à baixa aplicação de medidas de flexibilização de penas, ao inexistente apoio para a reinserção social, ao isolamento social a que ficam sujeitas as pessoas presas com severas limitações de contato com as suas famílias e comunidades e os percursos prévios de institucionalização que muitas viveram previamente à prisão, configura os ciclos de pobreza-exclusão-institucionalização-violência (5). Na prisão as discriminações, violências e a exploração persistem e são exacerbadas remetendo-as para invisibilidade, abandono social e marginalização. O objetivo deste grupo é de visibilizar a realidade obscurecida das prisões e pensar coletivamente possíveis ações de apoio para quem está dentro. View all posts by Vozes de Dentro

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